Fisgada pelos sentimentos
- Carolina Keyko
- 13 de jun. de 2014
- 5 min de leitura
“Quando a razão é capaz de entender o ocorrido, as feridas no coração já são profundas demais” - Zafón, C. R. A sombra do vento – Página 33.

O que dizer de um autor que constrói uma narrativa de ritmo eletrizante, escrita em uma prosa ora poética, ora irônica? O enredo mistura um grande repertório de autores, misturando gêneros como o romance de aventuras de Alexandre Dumas, a novela gótica de Edgar Allan Poe e os famosos folhetins amorosos de Victor Hugo.
Ambientado em Barcelona da metade do século XX, entre as últimas glórias do modernismo e as trevas do pós-guerra, o romance de Carlos Ruiz Zafón é uma obra sedutora, comovente e impossível de se largar. Além de ser uma grandiosa homenagem ao ambiente místico que os livros proporcionam é um trunfo na grande arte de se contar histórias.
Tudo começa em Barcelona, em 1945. Daniel Sempere é um jovem que completou seus 11 anos. O pai, ao ver o filho triste por não conseguir lembrar o rosto da mãe já falecida, lhe da um presente inesquecível – em uma madrugara fantasmagórica, os dois vão ao um lugar misterioso no coração do centro histórico da cidade, conhecido como Cemitério dos Livros Esquecidos.
O lugar, conhecido apenas por uma pequena parcela barcelonesa, é um enorme e confuso labirinto de livros. A biblioteca funciona como depósito para obras esquecidas pelas pessoas e pelo tempo, e anciã por sua descoberta.
“É hábito nosso, da primeira vez que alguém vista este lugar, que escolha um livro, aquele que preferir, e que o adote, garantindo assim que nunca desapareça, que se mantenha vivo para sempre” pagina 13.
É nela que Daniel encontra um exemplar de “A Sombra do Vento”, do escritor barcelonês Julián Carax. O livro desperta no pequeno protagonista um enorme fascínio por aquele autor desconhecido e sua obra, que ele descobre ser bem vasta. Obcecado por Julian, Daniel inicia assim uma busca pelos outros títulos de Carax, e, para sua surpresa, descobre que alguém anda percorrendo bibliotecas, coleções particulares e até mesmo a editora Cabestany, responsável pelas publicações dos romances do autor. Porém, o exemplar que o pequeno Daniel tem em mãos poder ser o último existente.
Logo ele vai entender que, se não descobrir a verdade sobre Carax, ele e aqueles a quem ama terão um destino terrível.
No romance há varias partes que emocionam e arrancam lágrimas de quem o lê, como Férmin Romero de Torres, um personagem despretensioso que chega de mansinho e arrebata sem que nos déssemos conta. Ele era um mendigo que em uma noite chuvosa, topou com Daniel todo molhado e lhe oferece um pouco de vinho barato. Quando o pai de Daniel precisa de ajuda na livraria, ele o recomenda Férmin e acabam se tornado grandes amigos. É um personagem coadjuvante que nos faz rir e chorar com seu jeito galanteador, sabido de tudo dessa vida e sua indescritível lealdade aos Sempere.
“Aprendizes. O coração da mulher é um labirinto de sutilezas que desafia a mente grosseira do homem trapaceiro. Para realmente possuir uma mulher, é preciso pensar como ela, e a primeira coisa a fazer é ganhar sua alma.” Página 111
Já outros personagens, como Nuria Monfort, o chapeleiro e o inspetor Fumero, são também muito bem delineados seguindo um padrão comum a todas as caracterizações do livro: qualquer pessoa pode ser boa ou má dependendo do ponto de vista de quem a está analisando. Nesse sentido, o chapeleiro, pai de Julián, ganha destaque, pois é o personagem com as descrições mais discrepantes sobre seu caráter. Elas, porém, não se excluem, mas mostram apenas constituir facetas diferentes de sua personalidade.
“Nunca confie em ninguém, Daniel, especialmente em relação às pessoas que você admira. Serão essas que irão desfechar os piores golpes.” Página 22.
A Sombra do Vento, ao trabalhar paralelamente as histórias de Julian e Daniel, os fazem viver momentos de extrema analogia, onde o romance platônico de Daniel por Beatriz Aguilar segue os mesmos passos do romance entre Carax e Penélope Aldaya, mas com conotações diferentes e a essa altura o leitor já está inevitavelmente arrebatado. É visível que o escritor coloca seu coração nas palavras e o leitor sente aquela alma entalhada no papel.
“Cada livro, cada volume que você vê, tem alma. A alma de quem o escreveu, e a alma dos que o leram, que viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro troca de mãos, cada vez que alguém passa seus olhos pelas suas páginas, seu espírito cresce e a pessoa se fortalece.” Página 9.
É justamente na construção da narrativa de A Sombra do Vento que Carlos Ruiz Zafón consegue pontuar os principais eventos da vida tanto de Julián quanto de Daniel, com revelações e reviravoltas que mudam o panorama da história, e assim consegue controlar brilhantemente o ritmo do livro durante suas 399 paginas. E por também espalhar elementos de mistério, típicos de romances góticos – como a figura sombria de jaqueta preta e cigarro que começa a observar e seguir os passos de Daniel, cuja descrição corresponde exatamente com a do personagem de Laín Coubert – o Diabo - no livro lido pelo garoto, assim como a recorrente presença de ruas cobertas por neblina e grandes mansões abandonadas com fama de mal-assombradas – o autor é eficaz em atiçar a curiosidade do leitor constantemente.
Zafón se mantém confiante ao escrever um livro que abrange amores pela leitura e a personagem de Beatriz Aguilar afirma isso na seguinte passagem.
“Bea diz que a arte de ler está morrendo muito aos poucos, que é um ritual íntimo, que um livro é um espelho e só podemos encontrar nele o que carregamos dentro de nós, que colocamos nossa mente e alma na leitura, e que esses bens estão cada vez mais escassos” página 396.
A Sombra do Vento é sim a obra-prima escrita por Zafón, na qual tudo se encaixa na mais perfeita sintonia. Ele parece escolher meticulosamente cada palavra, cada vírgula, não de uma maneira artificial, mas sim naturalmente poética, como a vida, como os bons livros.
“De todas as coisas que Julián escreveu, aquela que sempre me pareceu mais próxima é a que diz que, enquanto os outros se lembram de nós, continuamos vivos” página 366.
É quase impossível imaginar os contornos da sombra de algo desprovido de forma. Eu disse quase. Esse é o poder das palavras e, a um nível maior, da Literatura. Poder de dar vida a conceitos e imagens que antes julgávamos impossíveis. O poder de dar forma ao mundo, de mostrar que a vida é mais do que parece.
Ficha Técnica:
Título: A Sombra do Vento
Autor: Carlos Ruiz Zafón
Editora: Suma de Letras
ISBN: 9788560280094
Ano: 2007
Páginas: 399
Tradutor: Márcia Ribas
Avaliação: *****
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